"A casa dos meus avós tem um cheiro característico, cheira a infância, a gargalhadas soltas e brincadeiras, a correrias descalças na relva molhada onde o corpo se alimentava apenas da energia da terra, cheira a cal dos muros límpidos acabados de pintar pelo meu avô, a saltos e a bolos que só a Vô sabia fazer, cheira a família, a saudades e a memórias para sempre.
As minhas memórias arrumam-se nas divisões e andares da casa dos meus avós.
Sempre fui apaixonada por sótãos, muitas vezes sonhei que os meus pais construíssem uma casa e me deixassem fazer do sótão o meu quarto. Isto porque me persegue a ideia que é neles que guardamos o passado que é bom de se recordar. Guarda-se em baús de sonhos carregados de trapos, fotografias, cartas, lembranças de onde viemos, de quem fomos e de quem somos. É no meu sótão imaginário que guardo com carinho todos os momentos e histórias que num puzzle complexo constroem um pouco da minha história. É nele que te guardo…
Mas nada como uma boa arrecadação numa casa, durante anos e anos amontoamos uma diversidade de coisas que achamos que um dia podem vir a ser necessárias, mas que de facto nunca servirão para nada. De tempos em tempos precisamos de espaço para novas coisas velhas que nunca irão também ser precisas, chegada a hora da limpeza compreendemos que o que tínhamos revelasse inútil e deitamos fora.
Da mesma forma se processa o meu depósito das memórias recicláveis. Nem toda a vida infelizmente se constrói de coisas boas, algumas mais amargas guardo-as na minha arrecadação, chegada a hora da limpeza analiso todas as que podem ser finalmente arquivadas no meu sótão, porque até se revelam mais doces e, as outras, inúteis vão fora.
Conheci-o numa fase da minha vida em que finalmente o ar que respirava estava limpo: de ódios, de inimizades, de paixões mal resolvidas, sótão e arrecadação bem arrumadas.
A receita para o “bolo” desta fase assenta em alguns ingredientes básicos: Amar, Amar e Amar –ME. Não podemos considerar que seja egoísmo da minha parte, mas sim uma necessidade. Sempre que as minhas relações amorosas tiveram o ponto final (.) tentei fazer após longos dias de sofrimento o balanço das ditas, concluindo sempre passados poucos segundos que o mistério para a minha incompetência para manter uma relação baseava-se na falta de amor por mim mesma. Resolvi então apostar em amar-me a mim, justo certo?"
texto redigido em Agosto de 2005
Passados quase 4 anos a minha vida tem um novo amor, precisa de espaço e de ar saudável para respirar. Como mãe achei que estes dias que ainda me posso mexer tem de servir para arrumar. Arrumar a arrecadação, os armários, as gavetas, as memórias, os desejos, os projectos e os sonhos...
Estou a centrar as minhas energias para a chegada da minha filha, quero que ela tenha ideia de um Mundo à sua volta arrumadinho. Deixo o caos para mais tarde.
Quero-me "despir" do acessório e centrar-me no essêncial. Espero estar a fazer as melhores escolhas, mas vou sem medo.